Aos sete anos, lá fomos eu e meu irmão, dois anos mais velho que eu, para aquela nova moradia, o Colégio Interno, União das Operárias de Jesus. A última coisa que vimos foi a pontinha da saia da minha mãe. Ela não olhou para trás. Seguramente estava chorando. Lá fiquei onze anos sem retornar a minha casa. Após, não sei quanto tempo do sofrimento pelo sentimento de abandono, tive que encontrar o meu lugar naquela nova família.
Muito cedo assumi as rédeas da minha vida. Havia perdido as minhas referências. Me tornei uma criança forte. O meu futuro a mim pertencia. Muito cedo também brotou em mim a vontade de ser médica. Aos 18 anos saio daquele mundo e entro em outro, que para mim já não existia. Minha casa. Minha família.
Desde que me separei da minha família, dos meus pais e irmãos, entrei em um processo de autoconhecimento, procurando me situar diante da mudança que o mundo me impôs aos sete anos. Não demorou muito e tudo passou a ser “por enquanto”, isto é, enquanto eu não chegasse à Escola de Medicina. Tinha uma vontade imensa de ajudar os outros. De ser correta. Tudo isto envolvido em muita confusão dentro de mim. A confusão do sentimento de abandono. Um vazio enorme.
Ao término do 3º grau, saí para um mundo do qual nada sabia. O choque quando este novo mundo se descortinou à minha frente foi enlouquecedor. Minha mãe tentava me ajudar, mas depois de tanto tempo, éramos como estranhas. Contudo devo admitir que nasci de uma mulher correta, boa, pura. O que se espera de uma mãe.
Aí a luta começou. Onde morar? Como conseguir o dinheiro para pagar o curso que abriria as portas do meu sonho? Trabalhei e estudei. A faculdade era a minha meta. O voo que planejei era muito alto e para bem longe. Período difícil. Doenças na família. Muita dificuldade financeira. Término da faculdade de Medicina em 1969. Novos desafios. Busca de emprego. Muita cobrança. Muito estudo e a certeza da necessidade de que o estudo estava começando.
Os empregos vieram. Não era tudo. Queria estudar muito. A responsabilidade era grande. O envolvimento com a minha família me impedia de uma concentração maior, afinal, eu era a filha com mais acesso aos recursos. Para não parar só havia um jeito – viajar para longe onde todo o meu tempo fosse destinado ao estudo. Como atingir este objetivo sem relacionamento, sem dinheiro e sem conhecimento de outro idioma, senão o português?
Durante a minha formação, tive muitos modelos que guiaram a minha trajetória médica. Como estudante, fui estagiária na Santa Casa da Misericórdia. Acadêmica bolsista do Hospital Estadual Miguel Couto e estagiária no Hospital da Lagoa. Já como médica cardiologista e concursada ingresso no serviço público, Hospital Miguel Couto e Hospital da Lagoa. Foi em um dos plantões no Hospital da Lagoa que se deu uma das mais importantes Tomadas de Atitude da minha vida, mas antes vou retornar a minha base.
No colégio interno tínhamos tarefas e cabia a você a maneira de executá-las. Por exemplo, na semana em que eu era a responsável pela cozinha na hora do jantar, não fazia o meu prato sem antes ter a certeza que os outros noventa e nove estavam servidos e não comia a minha fatia de doce, sem ter a certeza que não faltaria para ninguém, às vezes só comia uma beiradinha. Não conseguia fazer nada mal feito. Sempre pensando nos outros. Assim era como agia com qualquer tarefa que me era atribuída. A responsabilidade se tornou uma das minhas características. Não precisava ser chefiada. Sempre achava que estava fazendo a Diferença. Voltando à Tomada de Atitude.
Estava de plantão quando a equipe foi chamada para atender uma criança em estado muito grave. Parada cardíaca irreversível. Sabíamos que o problema era o coração. Mas o porquê da perda, não se tinha a menor ideia. Foi aí que me dei conta que havia uma lacuna no conhecimento das doenças do coração da criança. Não existia ainda a especialidade Cardiologia Infantil.
Como e para onde ir para estudar o coração da criança? Tinha que sair do Brasil. E o dinheiro? Como abandonar o emprego que me daria a segurança no futuro, como todos apregoavam? É loucura! Loucura era fingir que estava cuidando do Ser Humano.
Através de leitura, conheci e me entusiasmei com uma médica inglesa – Dra. Jane Somerville, que era pioneira na especialidade que mais me atraia – a cardiologia pediátrica. Começaram as dificuldades para acessá-la. O idioma, o grande obstáculo. O aprendizado do inglês foi batalha dura de vencer, mas era fundamental para o início de nova etapa.
Consigo uma bolsa de estudos do Consulado Britânico e lá vou eu como Fellow para o National Heart Hospital – Londres, para me graduar em Cardiologia Pediátrica.
Finalmente, a Inglaterra. Pânico. Confusão. Taquicardias. Que estou fazendo aqui?
Aos poucos a situação mudava e me comparava à Alice no País das Maravilhas. Sozinha, sem ter para quem telefonar lá ou cá. Pouco dinheiro, mas vivendo um sonho acalentado desde a infância.
Confesso que não foi fácil. Lá também, muitas Tomadas de Atitude, após o que passei, consegui ser tratada com muito respeito e carinho. Passei a trabalhar com toda a estrutura. Muitos modelos. Muito estudo. Um descortinar sem fim para o mundo e para a medicina. Foi lá que consegui o suporte financeiro para esta nova jornada, a pós-graduação.
Dois anos após a minha chegada, lá estava eu em Nova York apresentando um trabalho pelo National Heart Hospital no American College of Cardiology. Em inglês, ouvi de um médico brasileiro que me assistiu e que não tinha ideia de como o meu coração batia: “se eu chegar a atingir a sua segurança me sentirei completo”. Talvez ele não se lembre, mas eu nunca me esqueci.
Conheci neste período, autoridades médicas que faziam parte dos meus livros didáticos.
Estes sonhos também foram sonhados no Internato.
Ainda em Londres, mais uma Tomada de Atitude. Precisava me aprofundar ainda mais no conhecimento da cardiologia pediátrica, com foco na especialidade de hemodinâmica. Uma nova etapa. Completar minha formação em cardiologia pediátrica.
Lá fui eu como médica concursada aceita para o Texas Children’s Hospital – Houston – Texas. Sempre com muito pouco recurso financeiro, mas maravilhada com o aprendizado que parecia não ter fim. Tinha apenas que ser Responsável e Fazer a Diferença. A estrutura estava me esperando.
Não esquecer que havia perdido o emprego da minha vida no Brasil.
O Texas Children‘s Hospital em Houston era a última palavra em cateterismo cardíaco pediátrico e o Dr. Cooley mostrava os melhores resultados cirúrgicos no que era possível ser realizado naquela época.
Finalmente, lá estava eu no maior centro de cirurgia cardíaca pediátrica da América. Felllow do Texas Children’s Hospital.
Novos desafios. Importante salientar que a cardiologia pediátrica estava se definindo como uma especialidade. Novas técnicas cirúrgicas. A hipotermia profunda aplicada na correção das cardiopatias. Até então a criança era tratada como um adulto pequeno.
Caminhávamos juntos, eu e o entender que criança não é um adulto pequeno, que recém-nascido não é uma criança pequena, que o prematuro não é um recém-nascido pequeno, até atingirmos o feto. Podemos olhar o coração do feto com precisão absoluta.
A ecocardiografia, na sua forma bem rudimentar, me foi apresentada em Houston com a profecia que mudaria o manuseio da cardiopatia congênita. Veio e mudou e salvou muitas vidas.
Retorno já iniciando a minha própria família. Casamento. Nascem os meus dois filhos.
Novo concurso e lá estava eu de volta ao Hospital da Lagoa, mais segura e com muitos Sonhos.
Dou início a minha prática médica privada com consultório na Clinica São Vicente onde também exercia a consultoria em cardiologia pediátrica. Tudo perfeito, considerando que para exercer bem a cardiologia pediátrica, uma estrutura hospitalar faz a diferença.
Retorno já iniciando a minha própria família. Casamento. Nascem os meus dois filhos.
Novo concurso e lá estava eu de volta ao Hospital da Lagoa, mais segura e com muitos Sonhos.
Dou início a minha prática médica privada com consultório na Clinica São Vicente onde também exercia a consultoria em cardiologia pediátrica. Tudo perfeito, considerando que para exercer bem a cardiologia pediátrica, uma estrutura hospitalar faz a diferença.
Tudo perfeito, como disse, até que: Sinto muito você tem que sair. Motivo? Até hoje não fui informada. Um retrocesso. Como trabalhava no Hospital da Lagoa onde organizei todo o departamento de cardiologia pediátrica; com ambulatório, internação, hemodinâmica e cirurgia cardíaca, era lá que realizava os procedimentos invasivos. Sentia falta da estrutura que deixei para trás.
Em 1989 me aposento do Serviço Público. Saio do Hospital da Lagoa, Fico sem base hospitalar. Outra Tomada de Atitude. Preciso estudar. Preciso me requalificar. Já era referência na especialidade. Mais uma vez largo tudo, até a minha clinica particular, e lá vou eu para o Children´s Hospital Medical Center – Boston.
Fácil partir? Confesso que não. E o retorno? Os pacientes retornariam ao meu consultório? Lá ficamos 6 meses, eu e minha família. Muito estudo. Muitos modelos.
Estava me requalificando no mais importante centro de cardiologia pediátrica do mundo. Tendo acesso aos mais recentes avanços na especialidade. Muita tecnologia. Muita estrutura.
Foi um descortinar infinito. Não parava nunca. Quando eu pensava, chega! Lá vinha uma nova técnica. E até hoje não para nunca.
Volta ao Brasil. Volta à minha clínica, CCI – Clínica Cardiológica Infantil.
1992. Implantei a Unidade Pediátrica do Hospital Pró Cardíaco. Muito trabalho, mas compensado pelo avanço que representaria para cuidar ainda melhor da criança com problema no coração.
Tudo perfeito. Minha clínica pediátrica acoplada ao Hospital Pró Cardíaco.
O importante era não me perder neste caminho cheio de obstáculos e não esquecer que o que me levou a tudo isto foi a vontade de servir ao próximo. Assim foi que presa aos meus princípios, sonhei, idealizei, implantei e estou trabalhando com afinco para manter a Instituição Pro Criança Cardíaca, fundada em 1996 para cuidar da criança cardíaca carente.
Criar a Pro Criança Cardíaca foi como mostrar a mim mesma que esta minha trajetória começou aos sete anos.
E como já disse, não para nunca.
E lá fui eu em direção à construção do Hospital Pediátrico Pro Criança Jutta Batista, fundado em 15 de setembro de 2014 para dar continuidade e sustentabilidade ao projeto social.
Terminar dizendo que toda esta luta para atingir um sonho pode ter me endurecido e tenho tentado melhorar como ser humano, quanto mais não seja, fica mais fácil me carregar, uma vez que não posso me desvencilhar de mim mesma.
Cheguei à certeza de que sou uma partícula deste universo atingida violentamente por tudo que envolve o nosso planeta.
Certeza também que todas as crianças com as quais me envolvi tão intensamente são partículas do meu universo, pois sofri e fui feliz por elas.
Certeza também de que não me sinto na primeira pessoa do singular. Não sou nada sozinha. Tudo que eu faço, dependo de todos. É uma realidade que às vezes incomoda porque aos sete anos comecei a decidir minha vida sozinha, assim pensava eu. Preciso de todos. Quanto mais dispenso os aplausos mais preciso ser aceita e mais preciso aprender a ficar só!
Saiba mais em https://www.procrianca.org.br/
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